sábado, 16 de abril de 2011

Inato X Aprendido (Parte 1)

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Autores: André Rabelo e Felipe Novaes

Desde a Grécia antiga até os dias de hoje, uma idéia tem tido grande influência na discussão acerca da natureza humana – a dicotomia entre comportamentos inatos e aprendidos ou explicações biológicas e culturais do comportamento, o que ficou conhecido com o debate nature or nurture, natureza ou criação, inato ou aprendido.

Este debate acalorado teve seu auge na metade do século passado e seu período mais crítico durou cerca de 20 anos, apesar de muitos ambientes acadêmicos ainda enfrentarem este fantasma, fruto de uma antiga disputa que misturou posições ideológicas e políticas com científicas.
De um lado, sociobiólogos e etólogos afirmavam que grande parte dos comportamentos eram inatos; do outro, pesquisadores das ciências sociais e psicólogos behavioristas defendiam que a maior parte dos comportamentos (ou todos) eram aprendidos.

Geralmente, as ciências humanas, sociais e comportamentais adotavam, e ainda adotam em muitos círculos acadêmicos, uma idéia próxima da tábula rasa, conceito criado por John Locke, que afirma que o ser humano nasce como uma folha de papel em branco a ser preenchida pelas experiências. Essa idéia já deveria ter sido revisada desde que, nos últimos anos, repetidas evidências tem apontado diversos aspectos do ser humano como tendo fortes bases biológicas.

Locke
A dicotomia entre inato e aprendido foi sendo vagarosamente substituída por uma visão interacionista entre ambos – depois de perceberem que além do preto e do branco pode existir o cinza também, os estudiosos do ser humano puderam avançar consideravelmente no entendimento de como predisposições biológicas influenciam o comportamento humano e como o ambiente pode afetar a expressão de características genéticas, além de quando essa expressão poderá ocorrer (Dovidio et al., 2006).
Um dos autores do presente texto já descreveu em textos anteriores algumas evidências empíricas corroborando a idéia de que os seres humanos possuem determinadas tendências humanas inatas, “aqui” e “aqui”. Além disso, Dovidio da dois exemplos para ilustrar  a relação entre pedisposições e o ambiente de um organismo: psicólogos do desenvolvimento conhecem, já há algum tempo, as diferenças individuais no temperamento de bebês (e.g. mais chorões ou calmos) desde o momento em que nasceram praticamente; também sabe-se hoje que determinados genes vinculados diretamente à atividade cerebral e à certos processos fisiológicos são ativados ou desativados por eventos ambientais.

Um outro exemplo é a linha de pesquisa sobre emoções humanas e suas expressões faciais desenvolvida pelo psicólogo Paul Ekman, que, inspirado nos estudos iniciais de Charles Darwin acerca da expressão de emoções em animais e em seres humanos, encontrou em seus estudos de povos primitivos que a expressão das emoções básicas (raiva, alegria, tristeza, desprezo, medo, surpresa e nojo) são praticamente as mesmas na espécie humana (Ekman, Sorenson e Friesen, 1969; Ekman, 2003), ainda que culturas diferentes possam dar nomes diferentes e acrescentar à sua expressão pequenas sutilezas; o que Ekman chama de emblemas e ilustradores. Todavia, ainda hoje muitos cientistas da área de humanas rejeitam essas pesquisas e chamam Ekman de preconceituoso e racista.
Apesar de esses esclarecimentos terem sido absorvidos por alguma parte da comunidade científica, a negação da natureza humana ainda é algo comum em muitas universidades no mundo, como o psicólogo Steven Pinker ilustra e explora em um de seus livros, Tábula Rasa: A Negação Contemporânea da Natureza Humana. Conforme Pinker (2004):
O tabu da natureza humana não só põe antolhos nos pesquisadores mas também faz de qualquer discussão sobre o tema uma heresia que precisa ser aniquilada. Muitos autores, de tão desesperados para desabonar toda insinuação de uma constituição humana inata, jogam a lógica e a civilidade pela janela. Distinções elementares – entre “alguns” e “todos”, “provável” e “sempre”, “é” e “tem de ser” – são sofregamente menosprezadas a fim de que a natureza humana seja pintada como uma doutrina extremista e, com isso, os leitores sejam conduzidos para longe dela.
A análise de idéias é comumente substituída por difamações políticas e pessoais. Esse envenenamento da atmosfera intelectual privou-nos dos instrumentos para analisar questões prementes sobre a natureza humana, justamente quando novas descobertas científicas as tornam críticas.
Antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, psicólogos e psicanalistas se figuram como os mais ardentes negadores de explicações biológicas acerca do comportamento humano. Para muitos deles, o comportamento pode ter uma base inata, mas o processo de aprendizagem é muito mais importante na hora de explicar o comportamento das pessoas. Também existem concepções mais radicais do ser humano beirando um reducionismo cultural: tudo que o ser humano faz é determinado por sua aprendizagem cultural, as culturas variam de forma quase infinita, caótica e  de acordo com nenhum padrão, sendo que até mesmo urinar ou defecar são apenas práticas culturalmente aprendidas.

Lembro ainda hoje de uma aula que tive (Felipe) na faculdade, sobre psicologia do desenvolvimento. Um aluno tinha feito alguma pergunta sobre esse debate nature or nurture e a professora falou algo interessante. Para ela, a biologia e a cultura atuam entrelaçadamente de forma que é um tanto complicado distinguir os dois.

Até aí tudo bem, mas ela prossegue dizendo que “por exemplo, a necessidade de beber água é determinada por fatores culturais. Hoje os médicos afirmam qu devemos beber 2 L de água por dia, mas eu mesma só bebo um copo de água por dia, quando chego em casa de noite; e nunca morri por isso! Lá na Índia existem aqueles monges que são capazes de permanecer dias sem beber água e também não morrem por isso.” Isso foi chocante. Ou o caso de um outro porfessor meu que afirmou que a pressão arterial e seu valor ótimo é cultural, ou seja, podem existir culturas em que seus habitantes possuem uma pressão alta se comparada ao nível recomendado atualmente em nossa sociedade, mas que vivem normalmente sem ter nenhum prejuízo na saúde por conta disso.

Antes mesmo da presença marcante das ciências naturais no debate, como a genética comportamental e a neurociência, esse aspecto já havia sido explorado de alguma forma pelo psicólogo e médico suíço Carl Jung, por exemplo. Ele percebeu que existem diversos símbolos e conceitos de mitologias de povos diferentes, mas que são muito semelhantes. De fato, vemos certas estruturas presentes largamente por aí, tal como o arquétipo do herói, por exemplo, que rege a jornada de heróis como Jesus, Buda, Hércules, Ulisses e outros heróis mitológicos, independente de haver fundo histórico em suas narrativas. Um de nós já escreveu sobre as semelhanças entre histórias contadas de Buda e Jesus “aqui” e “aqui”.
Hoje em dia compreende-se que a pergunta “é inato ou aprendido” é, além de mal formulada, inútil e retrógrada, pois se baseia numa suposta oposição excludente entre o que é inato ou aprendido, quando de fato os dois conceitos não são opostos, e muito menos excludentes.

Toda essa resistência em considerar as evidências não resultou de pesquisas sistematicamente conduzidas que chegaram à outras conclusões, mas principalmente de ideologias que pretendem fundar e modificar a história humana, selecionando as conclusões “politicamente corretas” às quais os cientistas podem chegar. Algo como “vocês cientistas não devem chegar à essas conclusões, olhem o que poderão estar estimulando”.
Existe nesse pensamento uma noção muito desinformada do que é a pesquisa científica: cientistas fazem pesquisas onde, através de um teste bem elaborado, podem obter mais de um resultado, que acabe corroborando ou não suas hipóteses. Porém, o resultado que será obtido no teste deve estar fora do seu controle de manipulação, portanto não faz parte da pesquisa científica escolher o resultado de algo.
(To be continued…)

Referências:

Dovidio et al. (2006). The social psychology of prosocial behavior. New York: Lawrence Earlbaum.

Ekman, P. (2003). Emotions revealed: Recognizing faces and feelings to improve communication and emotional life. New York: Times Books.

Ekman P, Sorenson ER, & Friesen WV (1969). Pan-cultural elements in facial displays of emotion. Science (New York, N.Y.), 164 (3875), 86-8 PMID: 5773719

Pinker, S. (2004). Tábula Rasa: A Negação Contemporânea da Natureza Humana. São Paulo: Companhia das Letras.