sábado, 14 de maio de 2011

Instintos, Sociedade e as Causas da Violência

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Autores: Felipe Carvalho e André Rabelo

Texto também publicado no Socialmente
A doutrina da Tábula Rasa se espalha por todos os assuntos que nos remetem ao ser humano. Com isso, seus adéptos tem a esperança de que os males da sociedade sejam resolvidos, isto é, através de crenças que nos dizem que todo tipo de comportamento é aprendido. A violência, palavra que sintetiza com sucesso um dos grandes medos atuais de todo homem que caminha por esse planeta, também recebe explicações politicamente corretas, mas que não servem para perscrutar o fenômeno cientificamente nem descobrir suas reais causas. A falta de sucesso em resolver o problema da violência é a evidência mais forte de que confundir ideologia e política com ciência não é algo produtivo.



Violência: Panorama Geral


Os noticiários nos bombardeiam com notícias sobre guerras, assaltos, maridos batendo em suas esposas, mulheres abandonando seu filhos em latas de lixo, assassinatos, enfim, temos a sensação de que nunca vivemos tempos tão ruins. Muitos antropólogos salientam essa visão popular ao se mostrarem adeptos da doutrina do “bom selvagem”. Segundo eles, a raça humana é naturalmente pacífica e todo o comportamento violento é socialmente aprendido, e que, inclusive, é uma criação recente. Para exemplificar eles dão exemplos de tribos ainda existentes, que vivem isoladas do mundo globalizado, no estilo caçador-coletor (assim como nossos ancestrais viveram). Esses povos primitivos (no sentido não de inferioridade, mas de estilo de vida antigo) são uma verdadeira janela para o entendimento do nosso passado. Achados arqueológicos e pesquisas com esses atuais caçadores-coletores mostram que a quantidade de baixas resultantes de guerra e violência em geral superam de longe as taxas observadas ao redor do mundo (Bamforth, 1994). O registro arqueológico nos mostra o nosso passado sangrento: esqueletos com marca de escalpo, afundamentos ósseos provocados por machados e pontas de flecha (muitas ainda incrustadas), armas com machadinhas e clavas que não são úteis para caçar mas ótimas para homicídios, pinturas rupestres mostrando grupos de homens abatendo uns aos outros com lanças e flechas (Keeley, 1996; Walker, 2001). Os dados indicam que antes mesmo do aparecimento do homo sapiens sapiens , as outras espécies já se trucidavam de forma grotesca, indicando que a violência é algo visto há pelo menos 800 mil anos (Fernández-Jalvo et al., 1996). E isso contradiz fortemente os antropólogos da paz, que diziam (alguns ainda dizem) que essas tribos só praticavam guerras rituais, que terminava assim que o primeiro homem caísse ferido.

“A história da raça humana é a guerra. Exceto por breves e precários intervalos, nunca houve paz no mundo; e muito antes de a história coeçar, o conflito assassino era universal e interminável”.

Essa frase de Winston Churchill pode refletir a vida de um homem que vivenciou diversos períodos periclitantes da história humana, como a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, e que, de fato, participou deles. Mas sua reflexão se mostra correta hoje, à luz das evidências. E ela serve também para os nossos dias (embora sejamos bem mais pacíficos que nossos ancestrais). Veja, por exemplo, o ano  de 2001, quando houve os ataques terroristas aos EUA. Mesmo antes do ataque e da onda de conflitos no Oriente Médio que se seguiu, a Lista de Conflitos Mundiais catalogava 65 áreas de violência sistemática, de Albânia e Argélia a Zâmbia e Zimbábue (National Defense Council Foundation, Alexandria, Va., www.ndcf.org/index.htm). 


De fato, vivemos tempos mais pacíficos, visto que, nas sociedades ocidentais, as taxas de homicídio tenham diminuído de dez a cem vezes no milênio passado (FBI Uniform Crime Reports 1999). Apesar desses dados, o presente não nega nosso passado sanguinário. Da próxima vez que você sair na rua (talvez seja preciso só dar uma olhada nas pessoas da sua casa e trabalho), conte quantos pescocinhos adornados com uma cruz você vê. A cruz, antes de ser relacionada a Jesus Cristo, é um símbolo milenar da criatividade humana para construir engenhocas capazes de proporcionar uma morte extremamente torturante e dolorosa. 


O Que a Tábula Rasa Diz


Existe a preocupação séria com relação às medidas que devem ser tomadas para diminuir a violência, mas a partir do momento em que essa preocupação se foca em dar respostas politicamente corretas e não em descobrir as causas reais do problema, ficamos estacionados. Nesse caso, a resposta correta é que a violência não tem relação com a natureza humana. Talvez o grau máximo de dogmatismo representado pelas ciências sociais foi a Declaração de Sevilha, segundo a qual é “cientificamente incorreto” afirmar que os humanos possuem um “cérebro violento” ou que sua evolução selecionou a violência (Seville, 1990). Veja essa frase de Ortega y Gasset, cuja palavra “guerra” pode ser substituída por diversas outras, como sexualidade, instinto materno, amor e tantos quanto sua imaginação lhe permitir (está de acordo com o que ouço de pessoas, professores e alunos, ligados à área das ciências sociais): “A guerra não é um instinto, mas uma invenção” (Ortega y Gasset, 1932/1985, epílogo). Recentemente a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação da Violência Contra Mulheres anunciou que “a violência é parte de um processo histórico, e não natural nem nascida de determinismo biológico”. 


As Causas Que Não Causam


A violência, como sintoma social de algo que também pertence à cultura e sociedade, é frequentemente tida como consequência da pobreza, discriminação, ignorância e doença, como disse Lyndon Johnson. Outras vezes, um dos indicadores citados é a educação, o que inclui o tipo de brincadeiras às quais as crianças são expostas. Aí entra o video game, por exemplo. “A violência é um comportamento aprendido. Todo brinquedo é educativo. A questão é: o que você quer que seus filhos aprendam?”(Daphne White, 2000). Veja essa outra declaração:
Então por que os EUA são mais violentos que outras democracias ocidentais industrializadas? Por causa de nossa predisposição cultural à violência. Socamos, espancamos, apunhalamos e fuzilamos uns anos outros porque é nosso imperativo cultural fazê-lo . (colunista do Boston Globe)
Alguns dados interessantes que temos aqui no Brasil contradizem a tese de que a violência é uma consequência da pobreza. Um trabalho publicado em 2008 pela parceria entre a Rede de Informação Tecnológica Latino Americana (Ritla), o Instituto Sangari e os ministérios da Justiça e da Saúde, com o título “Mapa da violência dos municípios brasileiros 2008″ traz dados que contradizem esse tipo de alegação. Entre os vários resultados que o estudo aponta, um deles foi que estados como o Maranhão, o Piauí e o Rio Grande do Norte estão entre os que possuem os municípios menos violentos se comparados com os municípios de outros estados como o Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal. Se compararmos a renda per capita desses estados fica difícil estabelecer relações entre violência e pobreza, visto que, por exemplo, o Piauí é o estado com a menor renda per capita do Brasil, mas não é o mais violento, como pode ser visto na tabela do artigo com os municípios mais violentos.


Raciocínio Circular


Inúmeras causas são postuladas. É claro que todas elas possuem alguma participação no comportamento agressivo em geral, mas não necessariamente a relação é de causa-consequência. Não preciso citar as outras hipóteses defendidas por diversos outros estudiosos porque todas elas possuem uma lógica circular essencial. Se pensarmos um pouco nós conseguimos percebê-la facilmente, mas, talvez, os antolhos usados por alguns cientistas sociais seja o bastante para cegá-los. A lógica geralmente pregada é a seguinte: nossa sociedade é violenta porque são apregoados valores violentos, brincadeiras violentas e programas de TV violentos. E os programas de TV e jogos violentos existem porque a sociedade é violenta. Em contrapartida, o que dizer de outras influências que atravessam as crianças?

 “As crianças americanas são expostas a modelos violento, obviamente, mas também são expostas a palhaços, pregadores, cantores de música folk e drag queens; a questão é por que as crianças acham algumas pessoas mais dignas de imitação do que outras.” (Pinker, 2002)


Achei esse trecho do livro de Pinker, Tábula Rasa: A Negação Contemporânea da Natureza Humana, sensacional porque ele sintetiza muito bem a lógica falha dos argumentos que levam em conta puramente os aspectos sociais. Por que diabos os homens são mais propensos que mulheres a se envolver em assaltos, assassinatos e atos violentos em geral? Se as influências midiáticas são a resposta, então por que os homens recebem essa influência e as mulheres não? Por que homens aprendem o comportamento agressivo de seus pais muito mais do que as mulheres? As questões de gênero são especiais para esse assunto porque elas nos mostram que, apesar de muitas vezes estarem expostos às mesmas condições culturais, homens e mulheres agem diferente, revelando aí algo que está além da simples aprendizagem. Pinker fala especificamente sobre os americanos, e mostra em seu livro que os fatores tido como responsáveis pela disseminação da agressividade não condizem com os fatos. Em post anterior, também mostrei pesquisas sobre a correlação entre violência e jogos eletrônicos. As pesquisas mostram, ao contrário do esperado, que “A ocorrência de episódios violentos envolvendo jovens de 12 a 15 anos está diminuindo desde 1997, quando foi lançada a primeira versão do GTA.”
 

Novamente, como mostrei nos posts Inato x Aprendido em parceria com André Rabelo  , terminarei dizendo que sermos realistas quanto aos estudos é a melhor arma que temos para lutar contra aspectos da sociedade e do ser humano, que julgamos prejudiciais. Cair num viés moralista ao invés de tentarmos descobrir as reais causas é uma ilusão. Portanto, se quisermos tentar erradicar (ou, de maneira mais realista, diminuir maximamente a violência) temos que seguir por esse caminho e distinguir ideologia política de ciência.

Referências: 

Bamforth, D. B., "Indigenous people, indigenous violence: Precontact warfare on the North American Great Plains", Man, nº 29, pp. 95-115, 1994. 

Keeley, L. H., War before civilization: The myth of the peaceful savage, Nova York, Oxford University Press, 1996.

Walker, P. L., "A bioarchaeological perspective on the history of violence", Annual Review of Anthropology, nº 30, pp. 573-96, 2001.

Fernández-Jalvo, Y., Diez, J. C., Bermúdez de Castro, J. M., Carbonell, E. & Arsuaga, J. L., "Evidence of early cannibalism", Science, nº271, pp. 277-8, 1996.

National Defense Council Foundation, Alexandria, Va., www.ndcf.org/index.htm

FBI Uniform Crime Reports, 1999

Ortega Y Gasset, J., The revolt of the masses, Notre Dame, Ind., University of Notre Dame Press, 1932/1985.