quinta-feira, 26 de maio de 2011

O Homem Mitológico

+A +/- -A


“O estudo comparativo das mitologias do mundo nos compele a ver a história cultural da humanidade como uma unidade; pois achamos que temas como o roubo do fogo, o dilúvio, a terra dos mortos, o nascido de uma virgem e o herói ressuscitado estão presentes no mundo todo – aparecem em toda parte sob novas combinações e se repetem como os 
elementos de um caleidoscópio.” Joseph Campbell – As Máscaras de Deus: Mitologia Primitiva



Várias pessoas se espantam um pouco quando mostro que sou um bom conhecedor de mitos e religiões. Isso ocorre certamente pelo fato de eu ser ateu. Naturalmente as pessoas consideram que um ateu é a última pessoa no mundo que se interessaria por esse tema, afinal, a mitologia é o nome que se dá para as explicações que os povos antigos, sem métodos eficientes, como a ciência, para examinar o mundo, davam para perguntas básicas como de onde surgiu o universo, a vida, os humanos, por que estamos aqui e etc. Esse é um tipo de resposta intuitiva e simplista. A mitologia é um reflexo de processos profundos da mente humana; que busca, acima de tudo, a experiência da vida, do sentir-se vivo.

O ser humano é um animal que elevou mais do que qualquer outro o chamado pensamento simbólico. Isso se deve, principalmente, ao desenvolvimento mais pronunciado em nós do que nas outras espécies, de uma estrutura chamada de neocórtex. Como animal manipulador de símbolos, possuímos já desde que nascemos uma arquitetura neural que produz certos processos e estruturas de pensamentos muito semelhantes em todo membro da espécie. Talvez o melhor exemplo disso sejam os chamados arquétipos junguianos. Jung, médico e psicólogo suíço, percebeu que histórias mitológicas de diversos povos se pareciam em suas estruturas essenciais, às vezes até utilizando os mesmos símbolos com os mesmos significados. Mas e aí? O que isso nos diz? 

J. Campbell
Essa origem interna faz com que os mitos sejam importantes para se entender a vida interna do homem. Isso porque o homem não é apenas social, econômico, racional e individual; mas também é um ser com questões interiores. Esse tipo de atividade interna visa o significado. Os significados são ressonâncias internas daquilo que está fora de nós, daquilo que é puramente físico. Como Joseph Campbell, um dos maiores especialistas mundiais em mitologia, exemplificou no maravilhoso livro O Poder do Mito, uma flor é só uma flor, mas qual o significado (ou seja, como aquele objeto físico se reflete internamente) daquilo? Campbell dá o exemplo de uma história Zen, em que monges e o Buda se reunem e ele não diz nada, somente segura uma flor (interprete isso a partir do fato de que uma flor é só uma flor, mas como cada ser humano significa essa coisa?). Paul Diel, em sua interpretação ético-psicológica do mito, diz que, por exemplo, na mitologia grega, cada divindade representa uma função da psiquê (Dies, 40). Também podemos dizer que a mitologia é o conjunto da história, aventuras, conflitos e façanhas dos povos antigos, representados à nível simbólico, isto é, uma poesia, uma dramaturgia da História (Evêmero, séc. IV a.C).

Oroboro - simbolismo da serpente como simbolo da vida
Dessa forma, outras coisas possuem significados ainda mais curiosos, e o mais interessante é que várias mitologias significaram tal objeto de uma mesma forma. É o caso da serpente. Todo mundo conhece pelo menos uma visão mitológica desse animal por causa do Antigo Testamento. Para entender onde quero chegar é preciso lembrar-se também de que nessa fábula, quando Adão e Eva comem do fruto proibido, tem início uma investida para tirar de si a culpa pela deseobediência: o homem culpa a mulher, a mulher culpa a serpente (Leia aqui sobre a polêmicatese sobre Satã na verdade ter sido uma espécie de vigário de Deus na Terra,segundo a própria Bíblia).
Existe uma lenda africana, dos Bassari, que conta uma história parecida. Esse povo acredita que no início dos tempos os animais estavam se questionando sobre um certo fruto que Unumbotte, uma entidade responsável pela criação do mundo, proibiu-os de provar. Logo o murmirinho chegou no ouvido do casal de seres humanos que habitava o local e eles resolveram provar, de curiosidade. Quando Unumbotte percebeu a atitude desobediente ficou tão decepcionado e raivoso quanto o Deus judaico-cristão e quis saber quem foi o culpado. Os animais culparam o homem, o homem culpou a mulher e a mulher culpou a serpente. Assim, como punição, do homem é tirada a inocência, a imortalidade, adquirindo todos os atributos que podem ser atribuídos a um humano.

Serpente no pescoço de Shiva
Como vemos aqui, os temas se repetem. A serpente é o símbolo da vida. É ela que desperta o homem para a a temporalidade (passado e futuro), para a vida (vida e morte), para a moralidade (certo e errado), em outras palavras, é a serpente o grande símbolo da dualidade que caracteriza a vida. E, se não fosse o homem desobedecer as ordens divinas, não iria ser conhecida essa experiência porque ele continuaria fazendo parte de uma essência divina, não viveria essas dualidades. Talvez a serpente tenha esse significado porque ela troca de pele, ela deixa o passado para trás e continua a viver. “Os caldeus usavam a mesma palavra para vida e serpente” (KEYM, 20). René Guénon faz a mesma observação: o simbolismo da serpente está efetivamente ligado à própria idéia de vida; em árabe, a serpente é el-hayyah e a vida, el-hayat (GUES, 159). A serpente também é vista associada à Shiva e Vishnu, na Índia, como a Ananta, que simboliza o desenvolvimento e a reabsorção cíclica, mas, enquanto guardiã do nadir, é carregadora do mundo, cuja estabilidade ela assegura (Chevallier, 2005).

A cultura judaico-cristã reverteu essa situação. A vida é negada por essa cultura. A Salvação é vista como algo a ser conseguido no pós-morte. Nosso mundo é governado por forças malignas que nos levam a pecar e, consequentemente, a natureza, a espontaneidade, a harmonia entre  os indivíduos e o mundo é negada. Por essa razão, a serpente que é o símbolo da vida, passa a entrar no time do Mal. “Foi expulso o grande Dragão, a antiga serpente, o chamado Diabo ou Satanás, sedutor de toda a terra habitada – foi expulso para a terra, e seus Anjos foram expulsos com ele” (Apocalipse, 12,9). E não só esse réptil, mas a própria mulher é discriminada, evitada, na medida em que é capaz de gerar vida. 

As histórias contadas na mitologia geralmente são vistas só como histórias (ou como hoje algumas pessoas escrevem: estória), tanto é que quando comento com alguém sobre Joseph Campbell, o maior especialista em mitos que conheço, observo um não-entendimento. Provavelmente as pessoas se perguntam: “Como assim especialista em mitos? Provavelmente ele sabe muitos mitos!”. Sim, ele sabe, mas para ser um especialista em mitos é preciso adentrar nesses contos, nesses símbolos e perceber que eles retratam a própria história do homem neste mundo. O mito nos mostra como o homem enfrentou as adversidades, seja com a própria natureza, seja com seus semelhantes (vemos isso por exemplo nesses exemplos acima, sobre o homem culpando o mais próximo pela desobediência), seja conflitos internos e revela as ressonâncias internas de um mundo natural, impessoal e frio, amoral. 

Referências:

Keyserling H. De, Méditations sud-américaines (tradução de A. Beguin), Paris, 1932.

Symboles fondamentaux de la Science sacrée, Paris, 1945.

Dicionário de símbolos: mitos sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números) / Jean Chevalier, Alain Gheerbrant, José Olympo, 2005.

Sugestão:

O Poder do Mito - Joseph Campbell

As Máscaras de Deus - Joseph campbell