quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Nossa Memória é Confiável?

+A +/- -A

A crença de que a nossa memória funciona como uma espécie de disco rígido de computador, gravando perfeitamente todas as informações, está bastante enraizada na cultura popular. É a chamada sabedoria popular. Talvez você não tenha identificado de imediato nada que se encaixe nesse mito, mas logo sua memória será refrescada com uns exemplos. Mas o pior de tudo é saber que não só a população em geral possui essas crenças, mas que psicólogos de todas as especialidades e níveis muitas vezes as compartilham. Uso de hipnose para recuperar memórias, confiança cega em testemunhas...saiba que tudo isso não passa de psicomitologia.

 
Cotidianamente nos deparamos com situações que desafiam nossa memória. Quantas vezes já não fomos desmentidos por outras pessoas presentes quando íamos contando um caso e a pessoa diz que não se lembra do acontecimento da maneira contada por nós? Às vezes perdemos algo e temos a lembrança de termos guardado a coisa num certo lugar e quando vamos ver não está lá. Isso é muito comum e é conseqüência do modo pelo qual o mecanismo que permite a memorização foi moldado pela seleção natural. Apesar desses fatos corriqueiros muita gente afirma que a nossa memória é uma espécie de DVD orgânico no qual é armazenado todo tipo de dado tal como ele é realmente, sem passar por nenhuma transformação. Só para se ter uma idéia, cerca de 36% dos americanos acreditam nessa afirmação (Alvarez & Brown, 2002). E o pior é que esse mito se espalha também entre a maioria dos psicoterapeutas (Loftus & Loftus, 1980; Yapko, 1994).

Talvez essa tendência exista como uma herança do pensamento psicanalítico. Freud acreditava que uma vez que lembranças reprimidas eram armazenadas no inconsciente (lembrando que o inconsciente em que Freud acreditava não é o mesmo verificado pela psicologia cognitiva) estas ficavam ali adormecidas e intactas (Wachtel, 1977). De qualquer forma, o que é um fato bem estabelecido hoje na psicologia científica é que memórias podem ser solidificadas melhor quando há um reforço emocional. Lembranças emocionais ou impactantes são bem estabelecidas por mais tempo, apesar de também estarem sujeitas a reestruturações com o tempo (Krackow, Lynn & Payne, 2005-2006; Neisser & Hyman, 1999). Provavelmente, essa característica funcional de nossa memória se deve a uma adaptação ao nosso passado evolutivo. Memórias estabelecidas em situações que invocassem medo, surpresa, raiva, nojo (algumas das 7 emoções básicas, segundo Paul Ekman) seriam estabelecidas de maneira privilegiada no nosso cérebro porque elas certamente carregariam informações importantes para nossa sobrevivência. Assim, se um tigre de dentes-de-sabre, por exemplo, fosse encontrado em certo local de caça, isso suscitaria surpresa e medo, talvez simultaneamente, o que levaria aquele grupo de caçadores humanos a se lembrarem do perigo que os espera caso resolvessem voltar. Essa é a lógica evolutiva.

Um exemplo interessantíssimo de como as memórias impactantes podem ser frágeis e manipuláveis foi tirado de um estudo sobre a desintegração do ônibus espacial Challenger , que matou as pessoas à bordo. Foi solicitado a um estudante da Universidade de Emory, 24h depois do acidente e 2 anos e meio depois, que relatasse o que havia acontecido com ele quando soube do acidente (Neisser & Harsch, 1992):
Descrição 1: Eu estava assistindo a uma aula de religião quando algumas pessoas entraram e começaram a falar sobre o que havia ocorrido (o evento). Eu não sabia dos detalhes, exceto que a nave havia explodido e que os alunos da professora estavam assistindo à decolagem, o que eu achei muito triste. Então, depois da aula, fui para o meu quarto e assisti à cobertura de televisão sobre o acidente e obtive todos os detalhes do que havia se passado.
Descrição 2: Quando eu soube da explosão pela primeira vez eu estava em meu quarto de calouro com meu colega assistindo à TV. Então, veio a notícia e nós dois ficamos totalmente chocados. Fiquei muito chateado e subi para falar com um amigo meu e, depois, liguei para meus pais.
As discrepâncias entre uma narrativa e outra são gritantes. Nesse estudo, os pesquisadores concluíram que 1/3 dos alunos pesquisados tiveram narrativas tão diferentes entre si quanto essas.

Agora, chegando ainda mais fundo ao problema, quando analisamos testemunhas oculares o esperado seria que tivéssemos melhores relatos, mais confiáveis e seguros. Bom, a última qualidade é verdade, os relatos realmente são mais seguros, mas a má notícia é que na maioria das vezes, ou mesmo sempre, a relação entre segurança e veracidade das palavras de uma testemunha ocular é nula (Memon & Thomson, 2007; Wells & Bradford, 1998). E ainda mais bizarro é que o fato de uma testemunha ocular ter visto, por exemplo, o assassino, não implica necessariamente que ela vá saber indicar quem é o criminoso quando colocado em uma fileira de outros suspeitos para ser escolhido (Kassin, Ellsworth & Smith, 1989). Para materializar ainda mais esse triste fato – e talvez imutável – saiba que em junho de 2009, cerca de 75% dos 239 acusados que foram libertados tinham sido condenados erroneamente  graças a depoimentos de testemunhas oculares.

Os estereótipos são um bom exemplo de como a nossa memória mesmo consolidada pode ser modificada posteriormente. Em estudo de 1978, em que eram dadas informações biográficas sobre uma personagem fictícia, algumas alterações foram encontradas tempos depois, quando foi solicitado aos alunos que relatassem essas informações sobre a mulher. Parte do grupo de estudantes recebeu uma informação adicional depois dos dados fornecidos a todos: a sexualidade da moça. Para um grupo foi dito que ela era heterossexual e para outros, que era lésbica. Essas pessoas, posteriormente, relataram o perfil da mulher de maneira muito diferente da dos outros voluntários. Isso mostra que toda a memória sobre a mulher fictícia foi modificada devido ao novo conhecimento de que ela era hétero ou homossexual, provavelmente devido às informações, preconceituosas ou não, que os participantes já tinham sobre pessoas que se enquadram nessas categorias (Snyder & Uranowitz, 1978).
 
Dito isso, temos um panorama um tanto pessimista sobre a nossa capacidade de memorização. E, infelizmente, essa é a verdade. Não temos uma memória tão boa quanto gostaríamos de ter. E isso é interessante para se repensar nossa vida sob diversos pontos de vista. Lembro que em debates/conversas religiosos as pessoas religiosas insistem na veracidade da Bíblia, principalmente o Novo Testamento, devido a crenças delas de que são relatos que partiram de testemunhas oculares de Jesus. Como teólogos e historiadores já estão carecas de saber, os evangelhos não foram escritos necessariamente pelos autores cujos nomes batizaram os evangelhos. Mas, mantendo o foco aqui na perspectiva mnemônica da coisa, mesmo que os evangelhos tivessem sido escritos por quem alegam, esses textos religiosos geralmente são escritos décadas depois do evento narrado e costumam ser produzidos com base na tradição oral. Agora sabemos que a memória humana não é um HD – e também que telefone sem fio não é um bom método de se transmitir informações fielmente – então o argumento que leva em conta as testemunhas oculares está furado, ou pelo menos deve ser analisado sob forte ceticismo. O mesmo digo à respeito das testemunhas de julgamentos. As estatísticas mostradas aqui mostram o quão falho é esse método de determinação de culpados e inocentes. Não entendo como o senso comum possa confiar tanto na nossa capacidade de lembrar em alguns casos mesmo com a chuva de evidências científicas e cotidianas de que não somos um gravador. O mínimo que se deve fazer é dispor de variados tipos de evidências antes de se condenar alguém (mas, claro, estou desconsiderando aqueles episódios mais simples em que a culpa do sujeito é mais que óbvia).

Referências
- Alvarez, C. X. & Brown, S. W. (2002). “What people believe about memory despite the research evidence.” The General Psychologist, 37, 1-6.
- Loftus, E. F. (1980). “On the permanence of stored information in the human brain.” American Psychologist, 35, 409-420.
- Kassin, S. M., Ellsworth, P. C. & Smith, V. L. (1989). “The ‘general acceptance’ of psychological research on eyewitness testimony.” American Psychologist, 8, 1089-1098.
- Krackow, E. Lynn, S. J. & Payne, D. (2005-2006). “The death of Princess Diana: the effectsof memory enhancement procedures on flashbulb memories.” Imagination, Cognition, and Personality, 5/6, 197-220.
- Memon, A & Thomson, D. (2007). “The myth of increadible eyewitness.” In: S. Della Salla (ed), Tall tales about the mind and brain (pp76-90). Oxford: Oxford University Press.
- Neisser, U. & Hyman, I. (eds.) (1999). Memory observed: remembering in natural contexts. NY: Worth Publishers.
- Neisser, U. & Harsch, N. (1992). “Phantom flashbulbs: false recollections of hearing the news about Challenger.” In: E. Winograd & U. Neisser (eds), Affect and Acccuracy in recall: Studies of “flashbulb” memories (Vol. 4, pp. 9-31). NY: Cambridge University Press.
- Snyder, M & Uranowitz, S. W. (1978). “Reconstructing the past: some cognitive consequences of person perception.” Journal of Personality and Social Psychology, 36, 941-950.
- Wachtel, P; (1997). Psychoanalysis, behavior change, and the relational world. Washington, DC: American Psychological Association.
- Wells, G. L. & Bradford, A. L. (1998). “Good you identified the subject’: feedback to eyewitnesses distorts their reports of the witnessing experience.” Journal of Applied Psychology, 83, 360-376.
- Yapko, M. (1994). “Suggestibility and repressed memories of abuse: a survey of psychotherapists’ beliefs.” American Journal of Clinical Hypnosis, 36, 163-171.