sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Consumo Conspícuo e Espiritualidade: A Religião Nos Faz Consumir Menos?

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Há algum tempo atrás eu escrevi um texto sobre a relação entre o consumo conspícuo com a seleção natural, que é um fenômeno social mas que nos remonta mais à evolução biológica dos seres vivos do que à cultura em si, apesar de tal faceta da evolução sempre aparecer fantasiada de itens culturais. Em suma, a conclusão a que cheguei foi que o ser humano, assim como outros animais – como o pavão – é naturalmente um ser que procura a ostentação. No entanto, andei repensando essa afirmação nos últimos dias. É certo que o ato de consumirmos coisas que não possuem um fim prático, mas que servem para ostentar nossos dotes através do desperdício e exibição de recursos, é algo incontornável por ser um comportamento herdado filogeneticamente? Algumas leituras que fiz me guiaram até uma interessante e surpreendente descoberta, que tem a ver com a religiosidade. 

Consumo Conspícuo
No texto Consumo Conspícuo e a Seleção Sexual – Porque Preferimos o Mais Caro, eu mostro que, de acordo com o visionário economista e sociólogo Thorstein Veblen, o ser humano, ao longo da história, sempre encontrou um modo de expressar culturalmente um tipo de comportamento bem incrustado nos genes de várias espécies, a ostentação. O homem se utiliza do consumo de itens desnecessários sob o ponto de vista prático, para mostrar que ele tem recursos suficientes para poder desperdiçá-los. Em outras palavras, é como se eu tivesse tanto dinheiro que pudesse usar um pouco dele como substituto da linha numa lareira. Certamente, isso sinalizaria que eu tenho tantos recursos que posso gastá-los de maneira indiscriminada. Outro exemplo: estou de frente para duas camisas de gola polo do mesmo tecido, da mesma cor. Porém, uma possui a logo de uma marca prestigiada e a outra, é de uma marca desconhecida, e possui um símbolo escondidinho. Qual será a preferida? De acordo com as pesquisas (citadas, inclusive no texto referido), a camisa da marca famosa será a escolhida. Por que isso? De acordo com essa idéia defendida por Veblen, a marca seria um indicador de que aquela camisa foi mais cara do que poderia ser uma outra, de  uma marca menos famosa, portanto , o gasto nela foi maior. Isso sinaliza  o indivíduo tem recursos de sobra para poder gastar na tal mercadoria, ao invés de optar pela blusa que, funcionalmente, é idêntica a outra, mas que é mais barata. Claro que, hoje em dia, com o advento das roupas de marcas famosas falsificadas, isso pode ser burlado, mas a idéia continua valendo, pois é como se a mensagem implícita da ostentação continuasse sendo mandada.

Espiritualidade e Consumo Conspícuo
O meu questionamento foi se, apesar de ser, digamos, um impulso natural do ser humano, assim como de outros animais, seria possível burlar esse mecanismo. Para responder essa questão, realizei uma busca por estudos e encontrei uma uma série deles mostrando que a espiritualidade e/ou a religião poderiam porporcionar uma diminuição no consumo conspícuo sim, bem como no materialismo* em geral (Stillman, 2012).

Espiritualidade: Em Busca de uma Definição
Antes de  tudo, devemos diferenciar esse nebuloso termo que constantemente é confundido com religião. Hill et al. (2000) define espiritualidade como o lado mais subjetivo da experiência religiosa, com o termo “religiosa” aí sendo utilizado não para se referir especificamente a uma religião, mas simplesmente a um sistema organizado de crenças, rituais e outras tradições associadas a um grupo. Eu discordo dessa definição, tendendo a seguir mais o que eu aprendi lendo várias coisas sobre o Dalai Lama. Segundo o monge budista, a espiritualidade não tem necessariamente a ver com religião. Se trataria mais de uma postura que possibilitasse a ação do indivíduo no sentido de fazer valer seus sentimentos humanos para com o próximo, tendo compaixão e se sentindo conectado a todos, inclusive à natureza em si. No blog Terapia Biográfica, encontrei ainda esta definição, dada pelo próprio Dalai Lama: “Espiritualidade é aquilo que produz no ser humano uma mudança interior”.



Independentemente das minhas discordâncias com as definições usadas, o fato é que as pesquisas sugerem que as pessoas que possuem uma religião e/ou espiritualidade, estão menos propensas a enxergarem o dinheiro como uma ferramenta para obter poder e prestígio (Watson et al. 2004). Entre os protestantes também houve um indício de que os que se julgavam mais devotos eram mais sujeitos a comprar itens com desconto (Sood & Nasu, 1995). Outro estudo atestou que pessoas religiosas costumavam ganhar menos dinheiro, mas também gastavam menos (Gwin & Gwin, 2009; Davies & Lea, 1995).

Em suma, esses estudos mostram que, de fato, existe uma relação entre espiritualidade/religiosidade, consumo conspícuo e materialismo. Aparentemente, como cogita Stillman et al. (2012), a espiritualidade, de algum modo, desperta no indivíduo um sentimento de que o consumo material desnecessário é algo errado, ou mesmo, que o indivíduo perde a vontade de consumir coisas muito além de sua necessidade. Por sua vez, essa característica viria por intermédio de uma amplificação do senso de coletividade em detrimento do ego. Um experimento que pode sugerir isso é o que mostra que os religiosos que se engajaram em orações diárias apresentaram um menor índice de egoísmo em relação aos controles (Lambert, Fincham, Stillman, Graham & Beach, 2010). No entanto, um bom questionamento sobre esse estudo seria se as pessoas menos egoístas tendiam a rezar mais ou seguirem uma religião ou se era o fato de seguirem a religião e orarem é que as tornava menos egoístas.

Testando Hipóteses
Mas, afinal, qual fator intrínseco à religião/espiritualidade medeia a diminuição do consumo conspícuo? Stillman, cujo artigo já foi citado, realizou um estudo interessante sobre o caso. Ele colocou como mediadores os itens auto-controle e materialismo. Estaria a espiritualidade agindo de forma a aumentar o auto-controle do indivíduo, tornando-o mais contido e consciente na sua forma de gastar dinheiro? Ou será que a pessoa tem a vontade de gastar em demasia com coisas não tão necessários sob o ponto de vista prático, diminuída, se tornando assim, menos materialista? Para testar essas hipóteses, o estudo foi dividido em dois. 

Estudo 1
Nesse estudo, os participantes tinham que classificar em uma escala de 1 (Em total desacordo comigo) a 6 (Concordância total com meu modo de pensar) frases que descreveriam o perfil espiritual deles. Eram frases como: “Eu sinto a presença de Deus”, “Eu sinto uma forte conexão com a Vida”, “Eu sinto compaixão pelo próximo” e “Eu sinto uma profunda paz e harmonia”. 

Logo após, era proposta uma tarefa: se recebessem 5000 dólares, como eles gastariam em cada um dos seguintes itens: um celular, uma viagem, pagando almoço com os amigos e em um carro. 

Estudo 2
O segundo estudo contou com a presença de cristãos, agnósticos e judeus, sendo que os primeiros eram os mais numerosos (75%). Assim, foram conduzidas perguntas e sugestões que estimulassem o surgimento de um sentimento de espiritualidade em todos, independentemente da crença: “qual foi o momento mais espiritual de sua vida? O que isso significou para vc? Isso significou uma proximidade com Deus, uma sensação de conexão com a humanidade, proximidade da natureza ou sentimento de unidade com o universo?
Para evitar a variável de que o sentimento de espiritualidade fosse indicado por sentimentos de prazer simplesmente, um grupo controle foi usado. A pergunta feita a eles era sobre o momento mais prazeroso de suas vidas, ao invés de ser perguntado diretamente sobre o momento mais espiritual, como no outro grupo. 

Dessa vez, os mediadores testados foram: materialismo, significado da vida e observação de um poder sobrenatural. Eles foram testados através de perguntas semelhantes às do estudo 1 e, também, responderam a uma escala que media o consumo conspícuo, também semelhante ao estudo anterior. Também foi usada uma escala para saber se as tarefas afetavam o humor dos participantes positiva ou negativamente. 

Resultados e Discussão

Como previsto pelos pesquisadores, os resultados mostraram que houve uma queda significativa do consumo conspícuo indiretamente proporcional ao grau de espiritualidade dos participantes. E, em ambos os estudos, o materialismo apareceu como o maior mediador. No entanto, o primeiro estudo era somente correlacional, não sendo possível inferir uma relação de causa e efeito direta entre consumo conspícuo e espiritualidade sendo mediada pelo materialismo. O estudo 2 foi inovador porque possibilitou que uma relação causal fosse estabelecida. E, talvez mais interessante ainda, o estudo não mostrou influência do aumento do significado da vida, auto-controle ou crença num observador sobrenatural como fatores mediadores da diminuição do consumo conspícuo e a espiritualidade.
Assim, parece que os líderes espirituais estavam certos ao dizer que o consumo, o materialismo e a espiritualidade e religião são inimigos entre si (Landis, 1957; McKibben, 1998). Um não está presente se o outro estiver, pelo menos não no mesmo grau em que estão presentes em pessoas não-religiosas e sem espiritualidade (lembrando, mais uma vez, que espiritualidade não depende de religião).

Dúvidas
Apesar de muito esclarecedor, esse estudo e outros já produzidos sobre o assunto, possuem suas limitações e ambiguidades. Por exemplo, o que fazer no caso das religiões em que os fiéis consideram o progresso financeiro um indício da graça divina? Se essas pessoas pensam assim, talvez seja coerente que elas queiram mostrar esse sucesso através da ostentação. Desse modo, a espiritualidade, nesse caso, talvez não seja incompatível com altos níveis de consumo conspícuo. Mas, será que não estaríamos falando, assim, de uma espiritualidade superficial ou, até mesmo, de uma pseudoespiritualidade?  Ou será que a espiritualidade pode se mostrar de diversas formas, porém, mantendo sua essência? Enfim, são questões em aberto que impulsionam novas pesquisas e nos fazem compreender melhor assuntos tão nebulosos como religiosidade e espiritualidade e sua relação com o consumo conspícuo, ostentação e riqueza. 

Referências
*Observe que existem dois significados diferentes para o termos materialismo. Existe o materialismo que é a postura filosófica que prega que a única coisa que existe é aquilo que é material. Não existiria Céu, Inferno, deuses, isto é, nada de metafísico, somente o mundo material. Mas existe o materialismo que é referente ao consumismo.

- Stillman, Tyler, at al (2012); The material and immaterial in conflict: Spirituality reduces
conspicuous consumption, Journal of Economic Psychology 33,1-7

- Hill, P. C., Pargament, K. I., Hood, R. W., McCullough, M. E., Swyers, J. P., Larson, D. B., et al (2000). Conceptualizing religion and spirituality: Points of commonality, points of departure. Journal for the Theory of Social Behavior, 30, 51–77.

- Watson, P. J., Jones, N. D., & Morris, R. J. (2004). Religious orientation and attitudes toward money: Relationships with narcissism and the influence of Mental Health, Religion & Culture, 7, 277–288.

- Sood, J., & Nasu, Y. (1995). Religiosity and nationality: An exploratory study of their effect on consumer behavior in Japan and the United States. Journal of Business Research, 34, 1–9.

- Gwin, C. F. & Gwin, C. R. (2009). Religiosity: Does it make you richer or poorer? Paper presented at the association of Christian economists 25th anniversary conference.

- Lambert, N. M., Fincham, F. D., Stillman, T. F., Graham, S. M., & Beach, S. R. M. (2010). Motivating change in relationships: Can prayer increase forgiveness? Psychological Science, 21, 126–132.

- Landis, B. Y. (1957). World religions. New York: E.P. Dutton & Company Inc..

- Mckibben, B. (1998). Returning God to the center: Consumerism & the environmental threat. In R. Clapp (Ed.), The consuming passion (pp. 40–50). Downers Grove, IL: Intervarsity Press.