sábado, 25 de fevereiro de 2012

Os 17 Estereótipos Ocidentais Sobre o Budismo

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Zen
 O budismo sempre foi uma religião que me interessou. Não sei dizer exatamente o motivo, talvez pelo fato de eles não crerem em uma divindade (algo que eu sempre achei complicado de conciliar com uma visão cética) de nenhum tipo, não terem ritos obrigatórios, não serem proselitistas, e de colocarem o próprio sujeito como o vetor de sua própria modificação. O fato é que existe um conjunto de fatores que sempre me agradou na prática budista. Sempre li uma coisa ou outra sobre a história dessa religião mas, agora, resolvi ler mais intensamente sobre o assunto. O resultado é que estou me surpreendendo ainda mais e vendo que muito do que eu achava que já havia entendido, na verdade não entendi ou não compreendi completamente. O estudo e a prática budistas são ótimos, mas o que está no centro da dificuldade envolvida nisso é o fato de estarmos acostumados com as noções religiosas ocidentais das religiões monoteístas. E ultrapassar esse filtro cultural para que possamos começar a compreender profundamente uma outra cultura que diverge em níveis essenciais da nossa é algo bem complexo. Assim, é comum que surjam mal entendidos tanto por parte das pessoas que tentam ler sobre o budismo quanto com relação àquelas que já olham qualquer religião (no caso dos ateus mais radicais) com desprezo e agressividade e àqueles religiosos que acham que a única religião que tem algo a nos dizer de positivo é a sua própria. Nesse meio tempo, li essa nota abaixo no facebook do dono do blog O Calango Abstrato, que fala sobre diversos assuntos, inclusive budismo. Achei o texto muito esclarecedor e fácil de ser entendido, por isso disponibilizo-o aqui. Boa leitura.
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Tenho três amigos com os quais converso com frequência sobre assuntos dos mais diversos. Um deles é um Ateu Militante. Segundo ele, toda e qualquer religião é um caminho para a ignorância e nos afasta da ciência e do avanço da humanidade. Outro é um Pastor Evangélico Calvinista, para o qual toda e qualquer religião que não seja a dele leva as almas para o inferno e, por isso mesmo, todos devem seguir sua religião se quiserem a salvação. O terceiro amigo é um agnóstico hedonista que não está nem aí para a espiritualidade dos outros, mas faz o possível para sempre criticar os outros que se portam com um mínimo de autocontrole. Em suma, são pessoas que não somente acham que todos só serão felizes do jeito deles, como ainda criam um conjunto de estereótipos acerca do outro sem nem mesmo procurar entender primeiro.

Daí, posso dizer que todos eles possuem um conjunto de 17 estereótipos padrões sobre o Budismo:


"O Budismo acredita em um ser superior que controla as nossas vidas"

O único ser superior presente no Budismo é a Natureza Búdica, que, na verdade, é o próprio sujeito. Isso significa que o Ser Supremo do Budismo é o próprio praticante. Além do mais, o Budismo é uma religião essencialmente de ateus e agnósticos. Não há um criador, um agente pessoal eterno, e nem mesmo um Apocalipse dirigido. São coisas que não interessam à maior parte dos Budistas. Na verdade, discutir se existem deuses ou não é um assunto completamente sem sentido para um Budista. Doutrinariamente, não há deuses no Budismo, nem qualquer ilusão externa ao indivíduo que o salve ou o condene, nem especulações sobre o início ou o fim dos tempos, e muito menos a preocupação em religar-se a uma entidade Mística Sobrenaturalista. O Budismo (principalmente o Zen) procura apenas uma experiência plena com a realidade, o que descarta a necessidade de deuses.

"O Budismo é sobrenaturalista"

Essa frase é muito usada por ateus que querem recriminar todas as práticas espirituais, assim como pelos cristãos, que querem usar esse dado para tentar nos convencer a segui-los. É um dado mais comum no Zen-Budismo, que constata que tudo o que existe É a natureza, e, portanto, natural. Se tudo é natural, nada existe sobre a natureza, e portanto não existe o sobrenatural. Um Budista esclarecido não perde tempo especulando sobre que há além da vida ou do plano físico, apenas se vive e se melhora ESTA vida. Não somos todos místicos ou esotéricos (isso fica a cargo do praticante). O sobrenaturalismo, porém, é escolha do praticante. Alguns são ateus, outros são teístas. Alguns são místicos e esotéricos, e outros são céticos e materialistas. Nenhuma crença ou percepção espiritual é uma obrigação.

"O Budismo é um sistema de crenças"

As pessoas confundem Sistemas Éticos com Sistemas de Crenças, como se fossem a mesma coisa. Um Sistema de Crenças é um conjunto de pressupostos sem os quais um modo de ver o mundo não funciona. O Cristianismo precisa de um conjunto de pressupostos, bem delimitados no Credo Niceno-Constantinopolitano. Você deve confiar no Credo. O mesmo se diz do ateísmo: você tem um conjunto de crenças a serem seguidas. No Budismo, há uma história simbólica que pode ser questionada. Isso porque os budistas não vivem na dicotomia crer/não-crer que existe no Ocidente. Sua concepção está mais na área do fazer/não-fazer. Assim, não é preciso crer no Zen, mas apenas praticá-lo.

"O Budismo é contra as armas"

O Budismo é pacifista, mas não contra as armas. Na verdade, o Budismo é um conjunto de práticas de melhora pessoal do indivíduo e de ajuda a outros indivíduos no que se pode ajudar. Muitas tradições até incentivam que o indivíduo aprenda a se defender por meio de qualquer coisa que estiver ao seu alcance (daí muitos budistas no passado terem inclusive desenvolvido artes marciais, algumas letais). A ideia do mestres em artes marciais é: para se defender, faça o possível, até mesmo mate seu agressor, mas deixe-o de lado assim que a ameaça for eliminada. Não é de se admirar que as artes marciais mais famosas (algumas com o uso de armas) tenham surgido a partir de ideais budistas: aikidô, jiu-jítsu, judô, kung fu shaolin (este com o uso de armas), dentre outros.

"O Budismo incentiva o praticante a renegar o mundo"

O Budismo é apenas uma doutrina que preza pela melhoria espiritual do indivíduo para que ele viva bem e feliz em qualquer situação em que estiver. Assim,não é obrigatório ninguém se tornar um monge, um mendigo ou um eremita. Pelo contrário, o Budismo ensina um caminho espiritual de "limpeza do ego" que permita que monges e leigos, mendigos e milionários, eremitas e celebridades, eruditos e incultos, onívoros e vegetarianos, jovens e velhos, todos, sem distinção de qualquer espécie, possam viver bem consigo mesmos e buscar o bem dos outros. Logo, ensina-se a não se apegar às coisas, mas também a não ter aversão a elas.

"O Budismo crê na reencarnação"

A Reencarnação é uma introjeção conceitual do Ocidente, e não uma doutrina Budista. Uma vez que nenhuma semente permanente sobrevive à nossa morte, a Reencarnação ou Transmigração da Alma (uma semente permanente) é um conceito estranho ao Budismo. Em vez disso, usa-se o termo Renascimento ou Remanifestação, para o qual o que existe é um conjunto de ações éticas e de materiais prévios que nos causa e que deixaremos para causar outras coisas, e ainda serviremos de material prévio para outras coisas. Por isso, dizemos também que o Budismo não é voltado a uma vida após a morte, pois uma das buscas dos budistas é o esvaziamento do Eu. Se não está preparado para começar a esvaziar, não siga em frente. O Eu, como tudo no universo, é impermanente. Não existia antes do nascimento, e não durará depois da morte. Ao morrer, a consciência, o Eu, se apaga como o fogo de uma vela, e evapora como uma gota de água sobre uma chapa quente. Logo, não existe crença no pós-morte para o Budismo.

"O Budismo possui leis, regras e mandamentos"

Um mandamento é uma regra inflexível, cuja não execução é punida por leis religiosas próprias (ou com ameaças de inferno ou promessas de paraíso). No Budismo não existem mandamentos, mas preceitos, ou seja, conselhos de mestres que, em anos de prática, perceberam que determinado caminho era o melhor a ser seguido e ensinaram isso aos discípulos, mas nunca obrigaram ninguém a seguir determinada postura ética. Significa que não há coisas obrigadas no Budismo, apenas indicações de qual o melhor caminho, mas nenhuma obrigação de se seguir este ou aquele caminho. Por exemplo: no Zen pede-se para fazer o Zazen, mas isso não é obrigatório, é apenas algo que os mestres aprenderam por gerações e compartilharam com seus discípulos. Se qualquer discípulo acha que outro caminho é melhor em relação ao Zazen, que aprimore esse caminho para que seja eficiente.

"O Budismo possui dogmas e rituais"

Quanto aos rituais, admito que pode ser verdade (há a presença de templos também). Apesar de nenhum deles ser obrigatório, o ritual é uma peça chave, pois ajuda na prática e cria um hábito na aplicação da ética. Quanto aos dogmas, o Budismo não possui. Todas as suas doutrinas são postas à prova pelos mestres aos seus discípulos. O Budismo não é uma doutrina de "está escrito, tem que aceitar". Não é uma religião dogmática e inquestionável, mas uma religião do experimentar. Não focamos em doutrinas pura e simplesmente sem, antes, focar a atenção na experiência. Além disso, o Budismo exige de seus praticantes uma constante postura crítica e cética, tanto em relação a doutrinas e ideologias, como em relação a crenças pessoais e à sua própria pessoa. Para isso sugiro ler o Kalama Sutra, em que o próprio Buda nos aconselha a não aceitar tudo o que se diz sem experimentar primeiro, nem mesmo seus próprios ensinamentos. Um espírito questionador é, portanto, essencial a um Budista.

"O Budismo é uma religião/psicologia"

Uma religião é um sistema de "religamento" entre o homem e um deus ou ser superior, que se dá mediante contratos de crença, fé e ritual, e quase sempre sustentada pelo mito. Uma psicologia é um sistema de "reajustamento", em que pessoas que estão em desequilíbrio com o meio social buscam ajustar-se à sociedade. O Budismo é uma prática ética de autoanálise e automelhoria, ou seja, não há um deus ao qual religar-se, e muito menos privilegia-se uma sociedade padrão à qual ajustar-se. O Budista está só, e ponto final.

"O Budismo acredita que você só é feliz sendo budista"

Há, no Budismo, um exercício ético interessante: compreender que qualquer pessoa, de qualquer vida espiritual benéfica, pode alcançar a iluminação e tornar-se um Buda. Por isso os budistas não estão preocupados se você é budista ou não-budista, estão interessados apenas se você se aprimora enquanto indivíduo e se é feliz. Diferente do Cristianismo (que baseia-se na pregação de uma salvação) e do Neoateísmo (baseado na pregação anti-religiosa), o Budismo não se baseia na "pregação" de uma verdade, mas no exemplo de seus praticantes. Para tanto, sua principal forma de propagação é o "ver e vir", demonstrar pelas ações e ensinar somente aos interessados. O "ver e vir" é o que faz, por exemplo, com que o Budismo cresça muito entre grupos interessados. Os Cristãos enviam missionários que saem pregando e convertendo as pessoas. No Budismo, um pequeno grupo se converte e só depois é que PEDEM a um centro que envie um missionário. No Cristianismo, a conversão é empurrada a você, no Budismo, a conversão vem somente de você.

"O Budismo preza pelo ascetismo e pelo fim da individualidade"

As pessoas confunde muito o prazer (a simples sensação agradável) com o desejo (ânsia de ter a sensação agradável a todo custo), e com isso acabam transformando o Budismo e uma espécie de ascetismo. Na verdade, não se procura eliminar o prazer nem a dor, mas apenas buscar o "Caminho do Meio", ou seja, encontrar um meio termo entre os dois, a moderação. Quanto à individualidade, ela é uma mera ilusão, mas deve ser respeitada. Logo, não existe no Budismo a preocupação extrema com a sexualidade do outro (muitos Budistas são homossexuais, e os centros budistas celebram casamentos homossexuais), com as opiniões do outro (a opinião deve ser respeitada), com a família do outro (o Budismo não tem um "plano" padronizado para modelos familiares), com as crenças do outro (há budistas céticos e esotéricos, ateus e teístas, convivendo tranquilamente) e muito menos com a vida particular do outro (não ficamos vigiando as ações do outro para ver se estão "pecando").

"O Budismo é machista, homofóbico e racista"

Apesar de algumas escolas (Tailandesa, Theravada, Tibetana) terem algumas reservas em relação ao homossexualismo ou à participação ativa de mulheres, os próprios mestres sabem que o próprio Buda Histórico recriminou seus discípulos por agirem, pensarem ou interpretarem seus ensinamentos de forma a diminuir a importância de outros seres humanos. A ideia central do Budismo é que todos os seres podem viver de forma harmoniosa, sendo as diferenças entre eles meras ilusões. Para ver como o Budismo aceita o diferente, há mestres budistas homossexuais (Mestre Jim Shalkham, da tradição Soto Zen), mestres budistas mulheres (Monja Cohen, também do Soto Zen) e boa parte dos budistas ocidentais são não-orientais (o que demonstra que não há primazia racial). Para o Budismo, o essencial é que se aprenda a conviver com o outro e se aceite o outro como ele é. Sempre somos lembrado que há muitos Bodissátivas (outros budas) que eram homossexuais, mulheres, anões, ricos, pobres, estrangeiros...

"Se você seguir o Budismo, deixará de sofrer"

O Budismo apresenta um conjunto de ações ou conselhos de como diminuir o sofrimento, que podem ser aplicados sem necessariamente você precisar ser budista, ir a uma sanga, visitar um templo ou abrir mão de outras práticas espirituais. Se, para deixar de sofrer, você tomou remédios e hoje está feliz, ótimo, que bom! Fico muito feliz por você! Se, para deixar de sofrer, você abraçou o Budismo e tornou-se um praticante exemplar, ótimo do mesmo jeito, é igualmente bom! O que o Budismo aconselha é que, para cessar o sofrimento, o indivíduo deve seguir o Caminho Óctuplo, ou seja, ter um caminho ético. O caminho óctuplo é tão somente o modo Budista de lidar com o comportamento humano, mas não significa que você não possa ser Estoico, Consequencialista, Humanista ou Utilitarista. Resumindo: você deixa de sofrer quando encontra um caminho ético coerente e pessoal, alguns encontrando no Budismo, outros encontrando no Humanismo. Simples assim!

"O Budismo é comodista"

Na meditação aprendemos que existe uma diferença clara entre passividade e comodismo. Passividade é tão somente o "deixar passar", é a velha prática do wu-wei de transformar uma energia em outra, e não tentar barrá-la. Se não entendeu isso, meditou de forma errada! É mais fácil desviar do carro que tentar pará-lo com seu corpo como barreira. Uma das principais atitudes do Budismo é o "faça". Não discuta o que fazer, faça! O melhor caminho a se seguir é a ação. Por isso, quando se entra no Budismo, tendo aquela ideia pré-concebida de pacifistas feitos de manteiga que morrem a qualquer soco, costuma-se ficar assustado quando nos deparamos com monges pró-ativos, budistas empresários e mesmo aqueles com forte participação na vida política e na luta por direitos.

"O Budismo te fará feliz"

Eu sou depressivo, e sou budista, e sou feliz. Não sou feliz porque sou budista. Sou feliz porque aprendi a me compreender. O Budismo não apresenta a fórmula da felicidade, mas para o Despertar. Se quer ser feliz, encontre outros meios (de preferência, encontre meios internos para a sua felicidade). Se você consegue ser feliz escrevendo livros ou desenterrando dinossauros, ótimo, que bom! Porém, há, como em todos os caminhos espirituais, gente que finge ser feliz para ser aceito. Se um budista finge sorrisos, então não entendeu o Budismo. Há uma frase que vi uma vez em um centro de Kung Fu de um amigo meu: "a felicidade é um sofrimento". Segundo ele, era de um mestre zen. Mesmo que não seja, é bem esse o espírito do zen: felicidade e infelicidade são distinções que fazemos, não fazem sentido.

"O Budismo é muito complexo para os incultos"

Um dos principais apelos do Budismo é que ele não vê distinções entre as pessoas. Há budistas pós-doutores como há budistas sapateiros semi-analfabetos. É fácil de ser compreendida essa característica do Budismo pelo fato de Sidarta Gautama ter sido um príncipe letrado e erudito, enquanto que o Sexto Patriarca do Zen-Budismo, Huineng, ter sido um lenhador analfabeto e inculto, e ambos serem igualmente respeitados nos dias de hoje. O Budismo não é um conhecimento acadêmico para poucos que exige anos de estudo e aprendizagem das línguas originais. Pelo contrário, ele é uma prática cotidiana, do dia-a-dia, é tão somente agir. Como o Budismo se baseia em doutrinas muito simples e em um viver mais prático, há muito pouco a ser deturpado caso alguém tenha uma cultura menor que um monge. É uma vida espiritual para poucos, tenham conhecimentos ou não.

"O Budismo é hierárquico"

Tudo bem, admito que seja um pouco hierárquico, mas o sistema depende muito de que escola falemos. Alguns apresentam uma organização social complexa, dividida em classes, estrados, lamas e eruditos. Outras escolas têm apenas a distinção simples entre o mestre e o discípulo. O praticante não tem nenhuma obrigação de sustentar ou aceitar a hierarquia do Budismo além da fundamental distinção entre mestre e discípulo. Eu, por exemplo, que pratico o Zen-Budismo, ainda não tenho mestre, e só procurarei um quando me achar preparado para ele. Se eu me achar preparado, não vou sair escolhendo um mestre aleatoriamente, e nem obedecendo ele em tudo, mas sempre analisarei seus ensinamentos e tentarei aplicar. É o espírito do Budismo.

Diante do posto aqui, espero que você, leitor, tenha percebido que, muitas vezes, não é saudável viver de estereótipos. Mal sabem meus amigos que minha visão não se adequa ao que eles costumam usar para julgar as religiões ocidentais. Na verdade, as crenças monoteístas não são a regra de comportamento espiritual, mas uma exceção que apareceu na história humana. No mais, espero que todos fiquem em paz.