domingo, 23 de junho de 2013

Confusões entre o método científico e atravessamentos sociais na motivação científica

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Os debates suscitados pelo DSM V perpassam várias áreas. A psicologia, a psiquiatria, sociologia e outras, estão fortemente imbricadas nas consequências desse manual (não só pela publicação de um novo, com modificações em relação ao anterior, mas pela existência em si, de um livro como esses). No meio das várias críticas traçadas – nas quais o transtorno pego como Judas é sempre o TDAH – algumas se sobressaem. Umas, por serem muito boas e nos levarem a uma reflexão profunda sobre nossas práticas terapêuticas, as teorias que embasam essas práticas e qual sociedade estamos criando com elas. Outras, destacam-se pela repetição de frases prontas – na verdade, rixas prontas e antigas que quando mencionadas dão ar de intelectualidade – e alguns argumentos falaciosos.

Mostrei já duas situações comuns nos debates sobre o DSM, em textos anteriores. Hoje, vou falar sobre outra: a confusão em considerar o viés político e relações de poder envolvidos em toda relação humana e o método científico.

Pense primeiro na arte. Dante escreveu seu épico poema sobre os círculos do Inferno – estágios de sofrimento pelos quais a alma passaria antes de se encontrar com o Capiroto. Ele reservou cada círculo para a alma com um tipo de pecado. O círculo de mais sofrimento ele reservou aos mentirosos. Ora, será sua imaculada criatividade? Sua genialidade? Sua mente à frente do tempo? De onde diabos ele concluiu que mentirosos deveriam sofrer mais no Inferno? Simples: Dante estava querendo se vingar dos detratores de suas obras, pessoas que inventavam calúnias sobre sua arte. Como odiava-as em específico, por esse problema pessoal, acabou refletindo tal conflito em sua criação.

É público e notório que o percurso científico não deu somente graças à inventividade de gênios, aos méritos da metodologia científica ou qualquer uma das características intrínsecas ao fazer ciência. Por exemplo, no século XIX, mesmo após estar quase certo de sua teoria, Darwin não publicou de cara A Origem das Espécies. Sua delonga ocorreu graças à sua esposa, que era católica fervorosa. O inglês achou que fosse ferir os sentimentos e a fé da mulher. Outro ponto interessante foi o motivo que fez Darwin de uma hora para outra publicar o livro: este ficou sabendo que um outro pesquisador, Wallace, tinha chegado às mesmas conclusões sobre a evolução das espécies.

Analisando agora, vieses mais profundos que esses, podemos citar o desenvolvimento da teoria psicanalítica. Freud teoriza que o psiquismo seria separado em dois: consciente e inconsciente. Diferentemente das teorias cognitivas atuais, para a psicanálise, o inconsciente não era apenas uma questão de processamento de informação, mas uma local da mente formado por tudo aquilo que fora reprimido. Seria o porão da nossa consciência. E este porão seria uma espécie de outro eu dentro de nós. Pois bem, muitos autores nesse mesmo período e até antes, já tinham falado de inconsciente, mas Freud ficou com a fama. Por que? Porque o momento em que ele desenvolveu seu trabalho foi mais propício e teve mais visibilidade.

A própria modificação de sua primeira teoria, que se apoiava em supostos abusos sexuais sofridos na infância, para uma diferente, em que na realidade esses abusos e experiências sexuais precoces eram fantasias infantis, teve influência de fatores sociais. Freud mesmo confessou que, se estivesse certo em sua primeira ideia, grande parte das crianças de Viena eram abusadas sexualmente. Claro que o escândalo consequente influenciou-o a pensar em outro modo de pensar a questão do inconsciente, traumas e etc.

Freud não é um bom exemplo de cientista, mas o que espero mostrar nesses exemplos é que é óbvio que fatores diversos interferem tanto numa pesquisa quando nas interpretações de seus resultados. Aliás, o fato de um dado fenômeno saltar aos olhos do pesquisador se deve a muitos fatores sócio-culturais e interesses próprios diversos.

Atualmente, esses elementos são usados para desqualificar o método científico, colocá-lo como mais um dentre muitos métodos, para perscrutar a realidade. Isso também é um tanto óbvio. Existem diversas maneiras de se estudar e ver o mundo, os fenômenos. No entanto, acho que o diferencial óbvio da ciência é que ela se constitui de forma a testar suas próprias hipóteses e reunir evidências para apoiá-las. Não trata-se apenas de alegações soltas baseadas em pensamentos puros, razão pura e subjetividade. Claro, mesmo com evidências, a subjetividade ainda age, mas obviamente que a capacidade de se sujeitar a testes e retestes é um mérito. Todavia, também é claro que nem tudo é passível de se testar cientificamente.

Na questão do DSM ou em qualquer outra que envolva ciência, a crítica é a mesma: “Ah, você vê a ciência de modo romântico...a neutralidade científica não existe, você está ignorando os conflitos de poder e interesses dos cientistas.”

Não existe nada de novo nesse argumento. Mas não podemos ignorar o método usado para se chegar a certos resultados e dizer que tais resultados são frutos de algum interesse social ou sei lá o que. Pela última vez: existe uma metodologia que embasa o decorrer de um estudo. Porém, o motivo pelo qual dado fenômeno ssaltou às vistas do pesquisador, o motivo de ele ter continuado a pesqisa e ter recebido verba e as interpretações dos resultados obtidos, isso tudo é gerado por coisas da natureza do social, cultural e subjetivo. Mas o que se faz com o método em si não é!