domingo, 3 de novembro de 2013

Qual o problema com o reducionismo?

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Essa é uma pergunta que tento responder desde o início do meu curso de graduação em psicologia. Até hoje não obtive sucesso. Observo também que os maiores críticos do chamado reducionismo não conseguem expor de forma clara seus motivos; o máximo que conseguem é expor uma série de chavões holísticos. Esse é um tema extremamente delicado na psicologia, de maneira que tive que – acidentalmente – partir para a filosofia para tentar entender um pouco essa briga.
Antes de qualquer coisa, vou explicar o que é o tão mal falado reducionismo e como a filosofia vem aprimorando minha análise sobre ele.

Patricia e Paul Churchland são neurofilósofos. Um neurofilósofo é um filósofo da mente que ao invés de adentrar em questões relativas à análise conceitual de termos relacionados à psicologia e neurociência, parte para uma investigação um tanto menos linguística. Os Churchland, a partir do final do século XX, tentaram mostrar que não precisamos de muito malabarismo conceitual em muitos casos, para entender aquilo que chamamos de mente. A neurobiologia, através de suas pesquisas empíricas, poderia nos ensinar muito sobre problemas complicados da filosofia, como a consciência [consciousness]. E, como também fazem pesquisas dentro da neurobiologia, fica clara sua defesa do fisicalismo, dentro do qual o reducionismo atua à vontade.

De forma geral, eles transformaram questões ligadas à problemática mente-cérebro, ligadas antes à filosofia, à análise puramente racional, e reformularam, formulando-a de modo a possibilitar a investigação empírica. 

Quando olhamos para aparatos tecnológicos, como o marcapasso, nanotecnologia e próteses, vemos ali nada menos do que a aplicação da lógica reducionista. Para entendermos um macrofenômeno [o funcionamento do coração, de uma célula ou de um membro] temos de compreender seu microfuncionamento. Imagine os médicos discutindo sobre a criação de um órgão artificial que bombeia o sangue e um dos membros falando: 

“Não, isso é impossível. Não podemos reduzir o funcionamento do coração à células, músculos, átrios e ventrículos!”.

Pode ser um tanto cômico, mas é exatamente isso o que acontece aos montes na psicologia. Os argumentos mais usados são: “Não acredito que a experiência do amor, da dor ou de enxergar o azul, possa ser reduzida a explicações cerebrais!”; “A ciência nunca conseguirá explicar a alma humana”; “Se um macrofenômeno é resultado de mais de um mecanismo, logo, nenhum mecanismo pode explicá-lo”. Alguns também achariam muito desumana e positivista [esse é um xingamento velado que o pessoal de Humanas adora usar] essa comparação com o coração, pois, eles diriam, o ser humano não pode ser reduzido a um organismo. Ah, adianto logo que não há nenhum erro em não fazer psicologia pesquisando esses micromecanismos, mas negá-los veementemente é absurdo. 


O que existe em comum entre esses argumentos é a vontade de que o reducionismo esteja errado. Eles também servem para alimentar uma série de mitos sobre a pesquisa que se vale do reducionismo. O mais popular é o de que “a neurociência ignora a psicologia em suas explicações”. Seria tão tolo um neurocientista ignorar a psicologia quanto um psicólogo ignorar a neurociência. Ser reducionista não é ignorar os macrofenômenos, mas tentar explicá-los através de microfenômenos.

Podemos explicar a mente em termos da atividade cerebral, não dizendo que ela emerge do cérebro, mas sim que ela é a própria atividade das células nervosas juntas. Se você ficou assustado, pense um pouco. Isso é tão válido quanto eu dizer que o raio não é causado por uma descarga elétrica, mas que ele é a descarga elétrica; ou que o computador não é causado pelo funcionamento de suas peças, mas sim que ele é, de fato, essas peças em funcionamento.

Isso não é desfavorecer em nada o estudo do comportamento, da cognição ou das emoções. Isso não é um fato incontestável, mas é uma hipótese mais razoável - e testável - do que, por exemplo, o dualismo cartesiano ou o de propriedades. O materialismo eliminativista, como é chamada a posição de filósofos como o casal Churchland, é mais simples e mais pautada em evidências [ou uma interpretação mais pautada em evidências, se preferir].

Além dos estudos de neuroimagem, que mostram o cérebro funcionando em tempo real, temos também o estudo de diversas condições causadas por lesão cerebral [prosopagnosia, afasias, etc]. Dessa forma, podemos ir mapeando quais faltas de comportamento ou cognição estão relacionadas com dada região cerebral [Phineas Gage ilustrou um dos mais icônicos casos de mudança de personalidade por causa de lesão cerebral].

Qual explicação alternativa ao fisicalismo poderia ser dada para esses dados? Poderíamos ficar ao lado de Descartes e dizer que os danos cerebrais causam déficits dessa natureza misteriosa porque o cérebro é uma espécie de máquina controlada por um espírito, o nosso verdadeiro eu, o fantasma na máquina. Ou, ainda, para um dualista de propriedades, poderíamos especular que não toda a mente, mas nossos estados qualitativos seriam entidades independentes do nosso cérebro, que eles formam um campo particular dentro da física conhecida do nosso mundo – o que refutaria o fisicalismo.

Ora, sejamos sinceros não com nossas crenças, mas com a lógica empírica da coisa. Apesar de todos esses argumentos, na verdade, terem sim lógica verdadeira, qual deles é o mais simples, o mais compatível com o que sabemos até agora sobre a natureza [fisicalista] do nosso mundo? É a teoria dos Churchlands, que se valem do reducionismo para explicar os macrofenômenos tão maravilhosos, o conjunto de funções que chamamos de mente [mencionei a dos Churchlands por ela ser a que melhor fala do reducionismo, talvez, que era o objeto deste texto; mas a filosofia de Daniel Dennett e outros filósofos também é bastante simples e coerente cientificamente].

Outra objeção bem comum faz uso de uma confusão epistemológica que é jogada nos braços dos fisicalistas  injustamente: “Mas eu não sou o meu cérebro, meu cérebro não sente nem vê nada!”.

Falando rigorosamente, realmente não podemos dizer que somos o nosso cérebro nem que nosso cérebro sente ou vê algo. Mas também não podemos dizer que a nossa mente possui neurotransmissores. Essa confusão, de forma simples, é equivalente a dizer que os seres vivos não podem ser feitos de átomos, pois átomos não são vivos.

Obviamente, o que estou querendo dizer aqui é que explicar um macrofenômeno através de seus microfenômenos não quer dizer tirar o valor do macro nem atribuir ao micro, características do macro. O que o reducionismo faz é explicar as coisas de uma perspectiva fisicalista, sem que precisemos de forças vitais misteriosas, entidades pertencentes a outro mundo ou ao nosso mesmo, que não são passíveis de estudo.

E como garantir que esse modo de encarar as coisas é o correto? O que a ciência vem mostrando até o atual momento, é que obtemos enorme sucesso explicativo encarando o mundo por esse ângulo. Então, não trata-se de assumir uma postura excessivamente instrumentalista, mas de não desprezarmos uma teoria simplesmente porque ela não se enquadra na forma como gostaríamos que fosse o mundo. E também não é questão de colocar O modo correto de enxergar as coisas, mas aquele que por enquanto vem mostrando bons frutos. Nas palavras de Putnam:


O argumento positivo a favor do realismo é que é a única filosofia que não faz do sucesso da ciência um milagre. Que os termos nas teorias científicas maduras tipicamente referem (essa formulação é devida a Richard Boyd), que as teorias aceitas nas ciências maduras são tipicamente aproximadamente verdadeiras, que os mesmos termos possam referir ao mesmo referente mesmo quando ocorram em teorias diferentes — essas afirmações são vistas não como verdades necessárias, mas como parte da única explicação científica do sucesso da ciência e, portanto, como parte de qualquer descrição adequada da ciência e de suas relações com os seus objetos. (1975: 75)