domingo, 15 de dezembro de 2013

O que é a felicidade mesmo, hein?

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A felicidade é o foco de um dos debates milenares da filosofia. Para falar a verdade, todos querem dar pitaco. Aristóteles disse que o que os filósofos e o senso comum chamam de felicidade são coisas diferentes.  É engraçado como algo tão presente em nossas vidas, ao menos em aspiração, seja tão controverso e ambíguo.
Oriente e Ocidente sempre divergiram sobre o tema, apesar das aproximações feitas por alguns filósofos [como Epicuro, um eudaimonista, que colocava o prazer como o bem supremo para a vida humana, confundindo alguns prazeres superiores com a felicidade]. De acordo com seus defensores, a felicidade só pode ser encontrada se dominarmos nossos desejos. Portanto, não é trocando de carro todo ano, comprando a maior televisão da loja ou cedendo a mil vícios que a felicidade será alcançada, mas percebendo a perenidade e o ciclo infinito de desejo e obtenção de prazer ao qual devemos nos submeter para sustentar essas excitações vazias. Escolher os desejos aos quais vale realmente a pena ceder seria o caminho para a virtude.
Quando temos uma coceira, é bom coçarmos. Mas é melhor que não tenhamos coceira alguma ~Shantideva
Em geral, essa posição não é defendida pelos intelectuais ocidentais. Nossa terra*é marcada por uma posição pessimista. Tendemos a representar de certo modo mais a visão hedonista do que a eudaimonista. Não que uma esteja necessariamente em oposição à outra, mas é que os hedonistas, digamos, tem uma disciplina um tanto mais desleixada no que diz respeito a controlar os desejos. Como, para estes, a vida humana é guiada pelo prazer, não devemos nos esquivar destes, pois ceder a eles seria a felicidade em si. Durante o Iluminismo, o hedonismo moderno ganharia tons mais egoístas, comuns ainda nos nossos dias, mas na Antiguidade essa face ainda não teria sido descoberta.

Para conhecer de uma maneira bem representativa o contexto ocidental do entendimento da felicidade, recomendo que assistam aos vídeos do filósofo Luiz Filipe Pondé. Em muitos ele deixa claro que pensa nesse sentimento como simplesmente a ausência de sofrimento. Parece pensar também que um tipo de felicidade mais constante é impossível para nossa espécie, já que seríamos naturalmente agoniados sobre nós mesmos o tempo todo.

Soa absurdo para ele, também, o chamado treino da felicidade. Não podemos nos obrigar a amar algo ou a ser feliz levando uma vida indesejável, infeliz.

A tradição ocidental bate palmas para Pondé. Absorvemos quase que por osmose, por milênios, a noção do pecado. Mesmo quem não é cristão ou judeu, vive como se houvesse algo de honroso no sofrimento, como se para chegarmos a algum lugar, tivéssemos necessariamente que nos submeter a grandes doses de dor. Há certo valor expiatório no sofrer. A tradição cultural do pecado [hoje já secularizada para nós] coloca o homem como passivo em relação à sua própria salvação, dependendo da boa vontade de Deus para absolvê-lo. E quase sempre, esse caminho envolve aceitar o sofrimento, pois os obstáculos são colocados diante de nós por Javé, como uma provação cujo prêmio para quem passar é o perdão.

Mesmo pensando assim, não podemos fugir do fato óbvio de que todo ser humano busca a felicidade. Como o monge budista Matthieu Ricard diz no livro Felicidade, não acordamos e pensamos: Poxa, hoje é um belo dia para se sofrer, hein?!

Estamos o tempo todo procurando a felicidade, o bem viver; mesmo que para isso tenhamos que passar por alguns maus pedaços. O sofrimento nunca foi um fim em si mesmo, mas a felicidade, sim.

A visão budista sobre esse embate é bem interessante. Eles pensam como os eudaimonistas, mas de forma mais extrema. Enquanto Epicuro acreditava que dominar os desejos significava escolher sabiamente aqueles aos quais deveríamos ceder, o budismo já propõe que devemos dominar profundamente a todos os desejos, e que os prazeres sensoriais – mesmo que provocados por motivos superiores como a razão – não são exatamente o que podemos chamar de felicidade.

Existe um termos bem específico em sânscrito: sukkha.

Quando Buda profere as 4 Verdade Nobres e diz que a vida é dukkha, normalmente posicionamos esse termo em oposição á sukkha. E dukkha é traduzido como sofrimento, o que traria uma visão bem pessimista das coisas. Mas o que dukkha realmente quer dizer é ciclo. Se a vida é dukkha, a vida acontece em ciclos de prazer e sofrimento e assim por diante – ou melhor, não a vida, mas nossa mente que interpreta os acontecimentos.

Então, sukkha é uma espécie de sensação constante. É como se fosse a base rochosa sobre a qual as emoções, mais fluidas e perenes, se desenrolam. Assim, mesmo que vc esteja passando por um momento difícil, poderá observar essas dificuldades, observar esse sofrimento resultante e ainda assim ter serenidade e ser grato pela vida – posturas que permitem que ao invés de nos lamentarmos incessantemente sobre tudo, passemos a aprender com os desafios e passar por eles de cabeça erguida. Ou seja, quando falamos da felicidade sukkha, não falamos do prazer causado pelos sentidos, mas de uma postura em relação aos acontecimentos.

E quando Pondé afirma confiante que não pode haver treinamento para a felicidade, de novo podemos contrapor isso com o budismo. Diferente do que entendemos por religião, o budismo é um método para treinarmos a mente. A meditação – além do estudo conceitual do próprio Dharma – é a prática que permite que tudo que os monges e leigos aprendem não fique só no plano da discussão filosófica. E, como diz o neurocientista Richard Davidson:
“Eu acho que há um ciência da felicidade que está se desenvolvendo e que uma das coisas que aprendemos a cerca da felicidade a partir do trabalho sobre o qual estamos falando, é que é melhor pensarmos na felicidade como uma habilidade. Normalmente não pensamos assim. Mas na verdade, todo este trabalho nos levará a ver desta forma – se praticarmos, nos tornaremos melhores nisso.”~Richard Davidson
Não são só os monges que afirmam que é possível haver um treino para aprendermos a ser felizes, mas a propria ciência vem descobrindo que eles estão certos.
“Sábio é aquele que consegue lamentar um pouco menos, esperar um pouco menos e amar um pouco mais.” ~André Comté-Sponville
Uma das coisas mais interessantes no budismo é que apesar de serem uma filosofia/religião (filosofia religiosa?), eles não se importam em dialogar com cientistas e se oferecerem para serem estudados. A neurociência vem desbravando todo um novo campo de saber sobre emoções e sobre o aprendizado graças à iniciativas como essa.

E longe de ser algo de interesse puramente acadêmico, a pesquisa sobre nossas emoções e, sobretudo sobre a felicidade, serve de base para a criação de várias iniciativas que buscam melhorar nossa consciência emocional, promover um mundo com mais compaixão e, também, para termos pessoas mais auto-realizadas e menos fúteis [que só se importam com coisas perenes].

[Outras discussões poderiam ser suscitadas sobre esse treinamento. Seria que realmente a felicidade obtida por causa de um treinamento é tão válida quanto a que obtemos “naturalmente”? ]




*Alguns estudiosos hoje são bem avessos a essa dicotomia Ocidente-Oriente. Mas é fato que os pensamentos diferem, ao menos na proporção na qual são defendidos em cada local.